sexta-feira, junho 08, 2007

Os Dois Corvos

Era uma vez dois corvos que fizeram o ninho num álamo em Pearblossom.
Num buraco, no sopé da árvore, vivia uma cobra cascavel. Era muito velha e muito grande e, quando chocalhava a cauda fazia tanto barulho que as crianças a ouviam na escola, em Littlerock. Dormia a maior parte do tempo, mas todas as tardes, pontualmente ás três e meia, rastejava para fora do seu buraco, trepava à árvore e olhava para dentro do ninho dos corvos. Se houvesse um ovo no ninho – e normalmente havia – engolia-o de uma vez s, com casca e tudo. Depois voltava a rastejar para o buraco e adormecia outra vez.
Quando a Senhora Corvo voltava da loja, onde ia todas as tardes comprar as mercearias, encontrava o ninho vazio.
- O que terá acontecido ao meu ovinho querido? – dizia, e procurava por todo o lado. Mas nunca o encontrava; e, depois do lanche, punha outro.
Isto já durava há bastante tempo quando, um dia, a Senhora Corvo chegou a casa mais cedo do que era costume e apanhou a Senhora Cobra a engolir o último ovo.
- Monstro! – gritou. – Que estás a fazer?
Falando com a boca cheia, a cobra respondeu:
- Estou a tomar o pequeno-almoço.
E deslizou pela árvore abaixo para dentro do buraco.
Quando o Senhor Corvo nessa tarde chegou de Palmdale, onde trabalhava como ajudante do gerente do armazém, encontrou a mulher muito pálida e esgazeada, a andar de um lado para o outro em cima do ramo fora do ninho.
- O que foi, Amelia? – disse ele. – Estás com um ar doente. Não comeste demais outra vez, pois não?
- Como podes ser tão bruto e tão insensível? – explodiu a Senhora Corvo. – Ando eu a trabalhar para ti que nem uma moura! Quando não estou a trabalhar, a pôr um ovo fresquinho todos os santos dias – fora ao domingo, claro, e nos feriados – duzentos e noventa e sete ovos por ano, e nem um corvozinho me saiu da casca! E tu só me perguntas se andei a comer demais. Quando penso naquela cobra horrorosa, fico toda a tremer.
- Cobra? – disse o Senhor Corvo. – Qual cobra?
- A que comeu todos os meus ovinhos queridos – disse a Senhora Corvo, e desatou outra vez a chorar.
Quando lá conseguiu finalmente explicar o que se passara, o Senhor Corvo abanou a cabeça.
- Isto é grave – disse. – Isto é aquele género de situação em que alguém vai ter de fazer alguma coisa.
- Porque é que não vais lá abaixo ao buraco da cobra e a matas? – perguntou a Senhora Corvo.
- Não sei porquê, não me parece lá muito boa ideia – respondeu o Senhor Corvo.
- Abraão, estás com medo! – disse a Senhora Corvo.
- Com medo? – repetiu o Senhor Corvo. – Nunca disse que estava com medo. Só disse que não me parecia que a tua ideia fosse muito boa. As tuas ideias raramente são boas, já agora. É por isso que vou falar com o meu amigo Mocho. O Mocho é um pensador. As ideias dele são sempre boas.
E voou para o choupo alto do jardim do Senhor Yost, onde vivia o Velho Mocho. O Velho Mocho, que trabalhava no turno da noite e dormia o dia todo, acabava de se levantar quando o Senhor Corvo lhe bateu à porta.
- Entra, Abraão – disse. – Desculpa estar ainda de chinelos.
O Senhor Corvo sentou-se e, enquanto o Velho Mocho fazia a barba e penteava as penas, contou-lhe a história toda.
- Bem – disse o Velho Mocho, quando ele acabou – só há obviamente uma coisa a fazer.
- O quê?
- Espera e verás.
E com isto o Velho Mocho abriu a porta e voou para o meio do campo de alfafa do Senhor Yost, que tinha sido regado nesse dia e ainda estava bastante molhado.
- Oh, isto está cheio de lama – disse o Senhor Corvo, quando aterrou ao lado do amigo.
- Abraão, falas demais – disse o Velho Mocho. – Bico calado e faz exactamente o que eu fizer.
Dizendo isto, apanhou uma mão-cheia de lama e pôs-se a moldá-la para ficar com a forma de um ovo. O Senhor Corvo fez o mesmo e, quando acabaram, o Velho Mocho voou para o telhado de casa da Olivia, para a chaminé que vinha da sala de estar.
O fogão estava aceso e a chaminé muito quente. O Velho Mocho pôs os dois ovos numa lata velha e a lata em cima da chaminé.
Depois os dois amigos voaram para casa do Mocho e jantaram.
Quando acabaram de lavar os pratos e de ouvir o concerto na rádio, eram dez da noite e a lua brilhava por cima das montanhas.
- Acho que os ovos já devem estar cozidos – disse o Velho Mocho.
E lá voaram outra vez para a chaminé e, claro, os ovos de barro estavam cozidos por dentro e por fora e duros como pedras.
- De que cor são os ovos da tua mulher? – indagou o Velho Mocho.
- Verdes claros – disse o Senhor Mocho – sarapintados de preto.
- Ainda bem que a Siggy tem andado por aqui a fazer umas pinturas em casa – disse o Velho Mocho. E, pegando na lata com os ovos, voou para a mesa que estava no jardim, ao pé da porta da cozinha, onde havia vários vasos com tinta e pincéis. Depois de pintarem os ovos de forma a parecerem exactamente ovos a sério, o Velho Mocho e o Senhor Corvo puseram-nos a secar em cima da chaminé e depois, por volta da meia-noite, quando a tinta estava bem seca e rija, voaram para o velho álamo onde a Senhora Corvo esperava, impaciente.
- Então – disse ela – qual de vós decidiu ir lá abaixo ao buraco matar a cobra?
- Nem um nem outro – disse o Senhor Corvo.
- Nem um nem outro? – gritou a Senhora Corvo. – Então são duzentos e noventa e sete dos meus ovinhos queridos que têm de desaparecer pela goela da cobra horrorosa? E hei-de eu ter este desgosto terrível em cada dia que passa e para sempre?
- Amelia – disse o Senhor Corvo – falas demais. Bico calado e sai-me do ninho.
A Senhora Corvo fez o que lhe mandavam e o Velho Mocho tirou os ovos da lata e pô-los no ninho.
- Para que é isso? - perguntou a Senhora Corvo.
- Espera e verás – disse o Velho Mocho.
E dizendo isto voou para Llano, onde tinha encontro marcado com um amigo para irem à caça.
Na tarde seguinte, a Senhora Corvo foi à loja como sempre fazer compras. Enquanto ela estava fora, a Senhora Cobra acordou e, como tinha fome, deslizou para fora do buraco, pela árvore acima, e ao longo do ramo para o ninho do Senhor e da Senhora Corvo.
- Dois ovos, hoje! – disse ela – mnham-mnham. E deu um estalo com os beiços, porque a mãe não lhe tinha dado educação e ela não tinha maneiras. Depois lançou o pescoço para a frente engoliu os dois ovos inteiros, primeiro um e depois o outro. Depois disso estendeu-se no ramo ao sol e pôs-se a cantar uma cantiguinha.
Não consigo voar – por asas não ter
Não consigo correr – por pernas não ter
Mas posso bem rastejar até onde
Está o corvo negro a cantar
E comer-lhe os ovos às pintas ha ha
Comer-lhe os ovos às pintas
De repente, parou.
- Os ovos deviam ter uma casca mesmo grossa – disse para si. – Normalmente partem-se antes de me chegarem ao estômago. Mas desta vez parece que é diferente. E logo começou a ter uma dor de estômago mesmo horrível.
- Au – dizia – uu, ai, ii.
Mas a dor de estômago era cada vez pior. A Senhora Cobra contorcia-se e retorcia-se e remexia-se e revolvia-se. E remexeu-se e revolveu-se tanto ou tão pouco que, sem saber o que fazia, deu com o pescoço um nó corredio à volta de uma ramada e não conseguiu desfazê-lo. Mas ainda tinha a cauda livre, e continuou a dar à cauda para um lado e para outro.
Não consigo voar – por asas não ter
Não consigo correr – por pernas não ter
Mas posso bem rastejar até onde
Está o corvo negro a cantar
E comer-lhe os ovos às pintas ha ha
Comer-lhe os ovos às pintas
E dava à cauda furiosamente e deu tanta volta e reviravolta naquelas complicadas convulsões que acabou por dar um nó muito apertado com a cauda à volta de outro ramo da árvore. E assim ficou, e quanto mais queria libertar-se mais apertava o nó. E os ovos de barro lá nas entranhas dela faziam-lhe uma dor de estômago absolutamente lancinante. A Senhora Corvo acabou por voltar da loja e, a princípio, quando viu a cobra, assustou-se. Mas assim que percebeu que ela estava toda emaranhada, sentiu logo muita coragem e pôs-se a dar à cobra um grandessíssimo sermão sobre a maldade que é comer os ovos das outras pessoas.
Desde então, a Senhora Corvo chocou já quatro famílias de dezassete crianças.
E usa a cobra como estendal, onde pendura as fraldas dos corvos pequeninos.


"Os Dois Corvos " de Aldous Huxley, com ilustrações de Beatrice Alemangna D. Quixote, 2005

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