sexta-feira, junho 08, 2007

O Aquário

Era uma vez um peixe vermelho. E era uma vez um aquário. Um aquário grande, pousado numa mesa comprida, ao canto da sala. Era aí que um menino passava horas, de olhos perdidos nos seixos, nas conchas, nos habitantes daquele lago em miniatura.
É que lá dentro viviam outros peixes. Eram três e de cor azul. Mas todos invejavam o vermelho, cujas barbatanas flutuavam na água, como pequenas chamas de seda. Mal a luz da manhã trespassava as largas janelas da sala, as escamas vermelhas ganhavam brilho. Seria por isso que nenhum dos outros peixes queria brincar com ele, que o não deixavam sequer entrar nas suas brincadeiras? Certo é que o peixe vermelho se sentia triste e só.
Todas as manhãs o menino deitava na água um pouco de comida. Os azuis corriam rapidamente, tudo fazendo para serem os primeiros e ficarem com a melhor parte. Depois iam brincar para dentro de uma pequena gruta de pedra, pousada na areia do fundo. Mas se o vermelho ousava aproximar-se, logo os outros lhe barravam a entrada, com cara de poucos amigos. Chegavam a morder-lhe as barbatanas, para de vez o afugentarem.
Por isso quase sempre o peixinho vermelho brincava só. Mas ao fim de algum tempo Aborrecia-se. Não tinha quem o acompanhasse nas corridas. E nadar, nadar depressa, de um lado para o outro do aquário, era a sua brincadeira preferida.
Como apenas comia as sobras dos companheiros, emagrecia a olhos vistos e cada vez se sentia mais triste. Até as escamas vermelhas começavam a perder a cor.
Certo dia, o pai do menino trouxe para casa um novo peixe. Era negro e vinha num saco de plástico cheio de água. Daí a pouco já nadava no aquário. Maior e mais velho que os outros, tinha duas listas vermelhas e brilhantes ao longo do corpo.
Quando viram passar aquela sombra, os três peixinhos azuis assustaram-se, recuaram para a gruta e ficaram à espreita. "Será que aquele grande peixe nos vai morder?", pensaram. "Quem sabe até se não nos irá comer?".
Os dias foram passando e sempre que o menino punha um pouco de comida na água, o peixe negro dirigia-se devagar até à superfície e comia o que tinha na vontade. Os outros ficavam a vê-lo de longe, com os seus olhos pequenos e medrosos. Em seguida o peixe negro retirava-se para um canto e parava a repousar. Só depois os azuis iam buscar a sua parte. Por último, aparecia o vermelho. Mas o que sobejava era pouco mais do que nada.
Certa manhã, o novo habitante do aquário nadou vagarosamente até junto de uma concha cor-de-rosa. Era aí que o peixinho vermelho costumava descansar. O peixe negro abriu a grande boca cinzenta e soltou uma enorme bolha de ar:
- Nunca falámos um com o outro – disse -, mas tenho reparado que és o último a comer e que estás cada vez mais enfezado.
Sem desviar os olhos da grande boca cinzenta, o peixinho vermelho respondeu:
- É que só me calham as migalhas que sobram, senhor peixe. Mas se assim não for, os outros mordem-me.
O mais velho disse então:
- Pois bem, amanhã vens comigo. Depois podemos brincar no outro lado do aquário. Lembras-te da concha branca, pousada junto à gruta? É para lá que vamos. E não te esqueças: a partir de agora passas a tratar-me por tu.
Na manha seguinte, a mãe do menino subiu as persianas da sala e a luz do sol invadiu de novo o aquário. Lentamente como era seu hábito, o peixe negro dirigiu-se para o lugar onde a comida costumava cair. O peixinho vermelho foi no seu encalço e dessa vez comeu sem receio. Depois, seguiu o seu novo amigo. Mal refeitos da surpresa, os azuis olhavam aqueles dois de longe, boquinhas abertas e olhos pasmados.
Passados dias, já o pequeno peixe vermelho engordara um pouco, e nadava agora de um lado para o outro, ao lado do companheiro. Quase sempre ganhava as corridas, porque o peixe negro era mais velho, mais lento e mais pesado. Quando desciam até junto da concha branca, divertiam-se a fazê-la balouçar na água ou a levantar pequenas nuvens de areia fina.
Até que, um dia, o peixe grande ficou doente. De manhã, já não vinha até à superfície da água. Ficava num canto do aquário, quase sem se mover, de olhos semi-cerrados. O peixinho vermelho levava-lhe então de comer, coisa que fazia agora sem receios. É que os azuis continuavam com medo. Mas o peixe negro já nem encontrava forças para brincar. Por isso o seu pequeno amigo se sentia outra vez triste. Tinha pena do companheiro e saudades das corridas a dois.
Um par de dias não era passado, quando um dos peixinhos azuis adoeceu e, também ele, deixou de comer. Na manhã seguinte, o mesmo aconteceu com o outro e, depois, foi a vez do terceiro. Faltavam-lhes forças para ir buscar comida e, ao fim de um tempo, o peixinho vermelho deixou de os ver.
Estranhando esta ausência, levou de comer ao seu amigo e depois foi ter com os outros à gruta, ainda a medo. Em deles. já muito fraco, explicou-lhe que estavam doentes e que todos necessitavam de ajuda.
- A culpa foi do peixe grande e negro! – Protestou. – Foi ele que nos contagiou com a sua doença. Tens de fazer com que saia do aquário quanto antes, senão morremos todos.
O peixinho ia dizendo que não era verdade, mas nenhum dos outros se deixava convencer. Foi então buscar-lhes comida e levou-a até à gruta.
- Estamos quase a morrer e tu nada fazes – insistiu outro com a sua voz de peixe muito sumida.
O próprio peixinho vermelho já se sentia doente e começou até a duvidar de si. Mesmo assim, não desistia de ajudar o amigo nem os peixes azuis que lhe queriam mal.
Com as forças que lhe restavam, decidiu então atrair a atenção do menino. Na manhã seguinte, começou a dar pequenos saltos para fora de água. Quando caía, ouvia-se: ploc! ploc!
O menino, que há vários dias andava triste e desconfiado, saiu da sala a correr.
Trouxe consigo o pai que estranhou o comportamento do peixe. E ao deparar com os outros quase imóveis, não perdeu tempo. Com muito cuidado passou-os a todos para uma bacia com água. Depois esvaziou o aquário, lavou-o e desinfectou-o. Em seguida tornou a enchê-lo com água limpa.
No dia seguinte todos se sentiram melhor, menos o peixe negro.
- Estão a ver? Não era por ele estar doente que todos nos sentíamos doentes – disse o peixinho vermelho aos companheiros.
E uma vez mais foi tratar o amigo. Ia agora na companhia dos outros que já tinham perdido o medo. Cada um transportava na boca uma migalha de comida.
- Obrigada, meus amigos – dizia o grande peixe negro. – O meu corpo está gasto e cansado. Se não fossem vocês, que seria de mim?
Pouco a pouco o velho peixe recuperou forças. Ao fim de alguns dias, já nadava devagarinho nas águas limpas do aquário, coçando as grandes barbatanas negras nas pedras e nas conchas.
Os dias passaram. Agora comem os cinco ao mesmo tempo. Quando o peixe grande demora a chegar, todos esperam por ele. Em seguida brincam às corridas ou levantando a areia do fundo.
Por vezes o grande peixe parece adormecer na concha cor-de-rosa. E o peixinho vermelho vai então brincar com os novos amigos. E é vê-los aos quatro na gruta, esgotados de tanto nadar.

"O Aquário" de João Pedro Mésseder com ilustrações de Gémeo Luís DERIVA Editores, 2004

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